Não compete à Igreja mudar a forma de seu regime
nem decidir do destino daquele que, uma vez validamente eleito, não é o seu
Vigário, mas o Vigário de Cristo. Por isso, ele não possui nenhum recurso para
seu Chefe, ou para depô-lo. Nasceu ela para obedecer. Pode talvez esta verdade
parecer dura. Todavia os verdadeiros teólogos não a atenuaram. Pelo contrário,
reforçaram-na. Para que tomássemos consciências de tudo o que se pode exigir de
heroísmo e devemos estar prontos para sofrer pela Igreja, os teólogos apontam
os casos extremos. Consideraram, primeiramente, um Papa escandalizando a Igreja
pelos mais graves pecados; e o consideraram também incorrigível. Perguntaram
então se a igreja poderia depô-lo. Responderam, não: porque não há pessoa na
terra que possa tocar no Papa.
Na sua “Suma sobre a Igreja” o Cardeal
Torquemada apresenta muitos remédios aos quais se possa recorrer nessa
calamidade: admoestações respeitosas, resistência direta aos maus atos, etc.
Mas todos os remédios podem ser ineficazes.
Resta, porém, um supremo recurso, mais ineficaz,
terrível às vezes como a morte, secreto como o amor. Este recurso,
conheceram-no os santos, é a oração. “Cuidai para que eu não me queixe de vós
a Jesus Cristo crucificado“, escreveu Sta. Catarina de Sena a Gregório IX.
“Eu não posso me queixar a outrem, porque não tendes superior na terra“.
(1)
Aos maus teólogos que pensavam ficar a Igreja sem
defesa se não fosse permitido depor um Papa viciado, o Cardeal Caetano, que
conheceu os tempos de Alexandre VI, não teve senão uma resposta: lembrou-lhes a
força da oração. Nunca ela aparece tão grande senão em tais conjunturas. É
sempre indicado recorrer à oração, ela é uma das forças mais puras de que o cristão
pode usar. Aqui, porém, ela não é somente um meio “comum” que deve ser usado
com os outros meios; ela torna-se o meio “próprio”, a verdadeira alavanca que a
Igreja na calamidade pode usar.
“Se me objetam que a oração é o remédio comum
contra todos os males que nos afligem, e que com relação ao mal considerado
neste caso deve se ministrar um remédio próprio, todo o efeito resultando não
apenas de causas gerais, mas ainda de uma causa própria -, respondo de modo
geral que as causas supremas, apesar de exercerem papel de causas comuns com
relação aos efeitos inferiores, exercem o papel de causas próprias com relação
aos efeitos superiores.
Por isso, a oração, que deve ser colocada entre as
mais altas causas segundas sobrenaturais, não é senão uma causa comum com
relação aos efeitos inferiores; mas é causa própria e um remédio próprio com
relação aos efeitos supremos, como seria – visto realizar um efeito reservado a
Deus, – a destituição de um Papa ainda crente, mas incorrigível“. (2)
Quanto à oração que deve ser feita, o mesmo autor o
diz quando repreende os seus contemporâneos quanto ao modo de recitar o Ofício
Divino e de celebrar a Santa Missa. Convém citar estas páginas onde
simultaneamente aparecem a clareza do seu gênio e a caridade de seu coração.
“A sabedoria divina que, na ordem natural,
governa os seres inferiores pelos superiores, e estes pelas supremas causas
segundas, semelhantemente age na ordem sobrenatural, à qual pertence a graça, a
fé e a Igreja fundada sobre a fé. Por outro lado, as causas são proporcionais
aos efeitos, as mais elevadas correspondendo aos efeitos mais elevados. Se, por
conseguinte, de uma parte, os meios da indústria humana (”providentia humana”)
por mais elevados que sejam pela autoridade da Igreja não representam senão uma
força inferior à oração colocada no ápice das causas segundas por Deus, ao qual
toda criatura corporal e espiritualmente está submetida; se, por outra parte, o
recurso contra um mau Papa, mas ainda crente, é considerado entre os efeitos
mais elevados na Igreja, conclui-se que Deus, na sua sabedoria, dignou-se dar à
Igreja, como remédio contra um mau Papa, não mais esses meios da indústria
humana, que podem influir sobre o resto da Igreja, mas só a oração. A oração da
Igreja pedindo com perseverança o que é necessário para sua salvação não se
mostrará menos eficaz que o esforço humano. Não é também eficaz e infalível a
oração fervorosa de um particular, pedindo para si coisas necessárias para a
própria salvação? Por conseguinte, se é necessária para a salvação da Igreja
que um tal Papa seja destituído, sem dúvida alguma a oração de que falamos o
destituirá. (…) – É necessário, diz-se, destituir um mau Papa por meios
humanos; não é suficiente o recurso à oração e só à Providência Divina. Mas
porque se diz isso, senão se preferem os meios humanos à eficácia da oração,
senão porque o homem animal não percebe as coisas de Deus, senão porque nos
acostumamos a confiar no homem, não no Senhor, e a colocar o nosso apoio na
carne? Mas quando um Papa obstinado no mal se apresenta, os mesmos inferiores,
sem deixarem os próprios vícios, contentam-se em murmurar diariamente contra o
regime; não procuram recorrer, a não ser em sonho e sem fé, ao remédio da
oração, de modo que acontece, devido às suas faltas, o que está predito na
Escritura: que é devido aos pecados do povo que um hipócrita reine, santo pelo
cargo, mas demônio pela alma. (…) Tornamo-nos de tal modo cegos a ponto de
rejeitar a oração, mas desejando os frutos da oração; recusando semear, mas
desejando a colheita. Que não nos chamemos mais de cristãos.”
Recorramos a Cristo. Venceremos mesmo que o Papa
seja frenético, furioso, dilacerador, dilapidador e corruptor da Igreja”.
Desse modo, mesmo que falhasse gravemente na vida
privada, o Papa não poderia ser deposto. O escândalo poderia ser imenso. A
infalibilidade doutrinal, porém, jamais seria atingida. E continuaria de fé a
verdade de que nenhuma tentação é sobre-humana. Deus que é fiel, não permitirá
que nenhuma tentação esteja acima das forças de seus filhos que lhe buscam a
face, e Ele oferecerá a cada um , sem segredo, o socorro que os farão vencer
(cfr. 1 Cor. 10, 13).
Retirado da Revista Permanência número 57 de julho
de 1973.
—
Notas:
[1] “Lettres de Saint Catherine de Siene”. I, 197.
Ameaça ainda Sta. Catarina ao Papa: “Cuidado, se amais a vida, para não agirdes
negligentemente…” (1.c.)
[2] “De comparatione autoritatis pape et concilii”
XXVII, 422). Sobre a oração empregada juntamente com outros meios para o
governo da Igreja, ver, por exemplo, a Alocução Consistorial de Leão XIII de
11-2-1889: “Todas as vezes que foi necessário e que os tempos permitiram, a
Igreja não teve ocupação mais querida que a de interpor sua autoridade para
levar à concórdia e pacificar os reinos. (…) Não nos desviamos desta via.
Finalmente, se não nos é possível de concorrer de outra maneira para a
manutenção da paz, continuaremos a nos refugiar, sem que ninguém nos possa
impedir, naquele que pode agir como quer sobre as vontades humanas e voltá-las
para onde quer”.
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