Autor: R.P. Gustavo Camargo
Sacerdote da F.S.S.P.X
Revista Iesus Christus N100 Jul.Ago 2005
(Republicado em http://www.conviccionradio.cl/Formacion%20Catolica/El_Itinerario_Espiritual_de_Lutero.html)
![lutero[1]](http://lh3.google.com/jorgelsmartins/RzTaXxD7fpI/AAAAAAAAAHc/kMEJJo2E4iQ/lutero%5B1%5D_thumb%5B2%5D.jpg)
Todos os erros de Lutero são produto, se é que pode dizer-se assim, de uma ‘bola de neve’ e vêm num crescente a partir de alguns erros filosóficos e doutrinais mal resolvidos e que culminam em uma grave crise moral.
Por isso é necessário percorrer brevemente esse itinerário descendente de Martinho Lutero, para assinalar certas conseqüências atuais de sua doutrina e que é preciso conhecer, precisamente porque a crise que vivemos hoje em dia na Igreja tem um grande aspecto de “protestantização” de toda sua liturgia e doutrina.
Lutero nasce em 1483, em Eisleben (Suíça) no seio de uma família humilde. Seus pais, Urs Luder e Margeritte Zigler, o educaram em um ambiente rígido, mais precisamente severo, traço este que se refletirá no caráter de Lutero.
Graças a uma pessoa amiga pôde estudar filosofia e direito na Universidade de Erfurt, mas a filosofia na qual abreva é aquela deformada e deformante de Guilherme de Occam.
Ingressa no convento agostiniano de Wittemberg, caracterizado por sua dura disciplina e austeridade, mas também pela falta de solidez doutrinal.
Tem como diretor espiritual Frei João de Staupitz, que é um homem piedoso mas de caráter débil e imprudente, e sobretudo incapaz de dirigir a alma atormentada de Lutero.
A teologia nos ensina que a fé é um ato da inteligência. Por isso mesmo, enquanto virtude teologal, reside na potência mais elevada da alma humana, faculdade que foi elevada mas não deformada pelo pecado.
O fundamento do ato de fé está estabelecido na Revelação. Seu objeto é o que Deus tem comunicado aos homens. É um conhecimento de Deus, a participação do conhecimento com que Deus mesmo se conhece. Deus tem revelado este conhecimento e o tem dado ao homem, que participa dele. Não seria possível uma revelação de Deus aos homens se ela não fosse dada em uma linguagem acessível ao gênero humano. A linguagem é um meio coextensivo à inteligência, e neste caso, a humana.
Lutero é um fiel discípulo de Occam e como tal fundará sua doutrina com um grande desprezo da razão: a razão “em tudo que se refere às obras e à palavra de Deus, é cega, surda, estúpida, ímpia e sacrílega”.
Lutero dizia de si mesmo: “sou do partido de Occam”; “Occam, meu mestre, foi o maior dos dialéticos”; “Guilherme de Occam, dos doutores escolásticos, é sem dúvida o primeiro”.
William Ockham, franciscano inglês, foi uma das figuras que por desgraça teve um papel importantíssimo na história do pensamento humano. Ele mesmo declarou querer iniciar com sua obra a via moderna da filosofia. Sua doutrina é profundamente confusa, muitas vezes superficial e contraditória, e alguns erros de fundo e certas conclusões de seus estudos foram particularmente nefastos.
O fato é que o nominalismo – também chamado “doutrina occamiana” – tem marcado a história da filosofia, inclusive até nos nossos dias. A partir da primeira metade do século XIV se difunde extraordinariamente; predomina na maioria das universidades e marca a direção principal tomada pela filosofia e a teologia escolástica até o século XVI.
Para Occam e seus discípulos o conhecimento intelectual humano tem como objeto próprio as coisas singulares, não as essências universais. Aristóteles, quando fala de abstração, assinala o obrar da inteligência que descobre nas coisas sua própria essência a partir da experiência sensorial. Em Occam a abstração é uma simples separação de certos dados da experiência a fim de considerá-los com precedência das circunstâncias que os acompanham. Assim, por exemplo, sem considerar que a realidade que é objeto de atenção tenha agora existência ou não a tenha, qualquer que seja o método de observação, o conhecido é sempre um fato singular, nunca algo de seu ‘eu’ universal.
Como o mesmo afirma, “nenhuma realidade fora da alma, seja por si ou por algo que lhe agregue, real ou de razão, de qualquer maneira que se a considere, ou que se a entenda, é universal: pois tão impossível é que uma realidade fora da alma seja de qualquer modo universal (...) quanto o é que um homem, sob qualquer consideração ou de qualquer modo, seja um asno.”
Levado por estes erros no campo da filosofia, Lutero chegará a uma definição de fé que afasta notavelmente do que a Igreja ensina. Já não é um ato de assentimento ao que é revelado por Deus mas um ato de natureza afetiva, pelo qual o homem sente em si a intervenção salvadora de Deus.
Com estes postulados o problema do pecado não encontra solução, não existe resgate possível, não existe satisfação da ofensa feita a Deus; em última estância, não existe verdadeiramente uma obra redentora realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo.
O que existe para Lutero é a simples não-imputação do pecado. Apelando à figura do ‘manto de Noé’, afirma que Deus cobre nossas misérias e não as têm em conta. A fé consiste portanto nessa segurança interior adquirida pelo homem de que Deus, apesar do pecado, lhe justifica e lhe salva.
Se essa é a teoria, consideremos a vida prática, concretamente em Lutero mesmo. Sua vida moral foi um calvário de tormentos pelas tentações da concuspiscência e pelas armadilhas demoníacas.
Para Lutero não existe distinção entre tentação e pecado. O voluntarismo reinante o levava a lutar contra seus ‘pecados’ recorrendo à penitência corporal e a seus próprios esforços, mas sem nenhuma prudência e sem o conhecimento da graça. Com cada nova tentação lhe parecia já encontrar-se no inferno. Boa parte da confusão em que se encontra sua alma se explica através da influência que lhe exerceram os escritos de Mestre Eckart.
Diante destas coisas, Lutero chega a uma triste conclusão: Eu não posso santificar-me e é impossível vencer as tentações. Na verdade, a santidade não é possível. Eu não sou santo porque nada pode ser. A graça nem transforma nem eleva nossa “natureza, que segue estando irremediavelmente corrompida, uma corrupção que mesmo persistindo, desaparece e se oculta sob o “manto de Noé”.
Assim se vê como aquela ‘bola de neve’, à qual aludimos, consegue por um intento – lamentavelmente muito comum – de justificar sua própria atitude: “se não vive como pensas, terminará pensando como vives”. A negação da autoridade da Igreja, do culto dos Santos, a deformação dos sacramentos se submetem às conseqüências deste falso princípio e caem em uma ladeira escorregadia: se conservam – não todos, obviamente – mas adquirem um significado completamente diferente do que têm no catolicismo.
O batismo não suporá a infusão da primeira graça na alma do recém-nascido porque todo homem é irremissivelmente pecador desde o primeiro ao último instante de sua vida; em todo caso, ficará reduzido ao caráter de sinal externo da não-imputação do pecado original (há lugar em sua doutrina para o pecado original?) e incorporação à comunidade dos crentes. A confirmação fica reduzida a um rito de natureza estritamente eclesiástica mas nunca de instituição divina. Mas com que fim, se o homem não pode lutar mais que em vão contra a tripla concupiscência? Com o mesmo argumento a penitência cai por terra.
Algo semelhante há de se dizer sobre a extrema-unção, que os protestantes mais conseqüentes eliminaram por completo de seus ritos. O matrimônio é uma mera convenção humana e não existe rastro algum nas Escrituras de que tenha sido estabelecido como sacramento por Nosso Senhor. De passo recordemos que Lutero, junto a Melanchton e outros conspícuos ‘pops’ do protestantismo de então, firmaram um ‘dictamen’ autorizando ao Landgrave de Hesse, que não podia reprimir sua paixão por uma donzela, para que contraísse segundas núpcias: não sucessivas, mas simultaneamente à que então era sua legítima esposa. A Missa, objeto de particular abominação por parte de Lutero, longe de ser um sacrifício é uma cena, uma refeição fraternal, uma profissão comunitária da fé da comunidade e na qual Cristo se faz espiritualmente presente. Destruída a Missa, nada fica do sacramento da ordem: os ministros religiosos são meros representantes da assembléia que supervisionam a boa ordem dos assuntos religiosos e repartem o pão da palavra.
A perspectiva de Lutero conduz a um voluntarismo mal entendido e sem frutos: mais ainda, muito perigoso, pois favorece o determinismo e o fatalismo.
Em troca, a verdadeira doutrina de Nosso Senhor nos quer instalar na humildade e na confiança na ação secreta da graça de Deus em nossas almas. O que para o homem é impossível – impossível por ele apenas, com seus próprios meios e suas próprias forças – não é impossível para a onipotência e a misericórdia de Deus.
Santo Agostinho, o doutor da graça, e depois dele Santo Tomás, explicam como a ação da graça de Deus é certamente um grande mistério: como Deus move o homem sem detrimento de sua liberdade. Mas o fato de não poder abarcar e compreender o insondável mistério da graça não nos autoriza para reduzi-lo nem para deformá-lo.
O Bispo de Hipona e o Doutor Comum ensinam como a graça, longe de suprir a natureza, a eleva e nos faz partícipes da própria vida de Deus. Na Cruz, Nosso Senhor satisfaz realmente por nossos pecados e de lá fluem como de um rio inesgotável toda a torrente de graças que se derramam na Igreja e nas almas dos fiéis através da Santa Missa e dos sacramentos.
Esse é o centro da Revelação e o coração de nossa vida cristã, e isso é o que melhor demonstra que há um abismo – e um abismo imenso – entre o protestantismo e o catolicismo.
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